Eu estava pronto para acabar com aquilo.
Peguei o caminho mais longo para o jardim, de propósito - não porque eu particularmente gostasse de caminhar, mas para poder me acalmar antes de vê-lo.
Eu nunca havia gostado de discussões. Não porque fosse uma pessoa fácil de lidar e quisesse evitar conflitos - eu podia ser bem teimoso às vezes - mas porque, toda vez que entrava em uma, meu corpo todo parecia não me obedecer. Minhas mãos tremiam, minha pele se avermelhava e, antes que eu pudesse me controlar, meus olhos se enchiam de água. Aquilo era um saco - meu pai sempre me mandava "parar de ser um maricas", o que fazia mamãe intervir, e de repente a sala era dominada por gritos que não paravam até Margareth começar a chorar, e então um deles deveria ir colocá-la para dormir. Geralmente era mamãe, porque meu pai sempre estava cansado demais para cuidar de qualquer um de nós, até nos fins de semana, o que não fazia sentido porque mesmo quando mamãe ainda trabalhava - anos atrás, quando seu rosto ainda se iluminava e sua voz ainda soava animada ao, durante o jantar, nos contar sobre seu dia - era ela quem nos arrumava pra escola e fazia nosso jantar e também todo o resto.
"Nós, homens, não temos tempo pra essas coisas, Glória" ele dizia, soprando seu cigarro em nossa direção, e me dava uma piscadela. Naquela época, quando ele ainda se dirigia a mim sem mamãe precisar obrigá-lo, eu tentava fazê-lo me amar, então, mesmo não entendendo seu comentário, sorria, e continuávamos jogando cartas. Eu mal conseguia me lembrar da última vez que havíamos feito aquilo - parecia algo distante demais, tão distante quanto a época em que eu namorara Dani pra tentar agradá-lo, até se tornar óbvio para dois de nós que aquele não era o tipo de amor que estávamos procurando.
6 meses atrás, ele ainda se dirigia a mim eventualmente - mesmo que fosse para deixar claro que eu não atendia a suas expectativas. 6 meses atrás, nós ainda tínhamos algum som, além dos talheres batendo no prato, na mesa de jantar. 6 meses atrás, ele ainda tentava me arrastar para a sessão de jogo de futebol com seus amigos do trabalho nos domingos. Naquele momento, entretanto, eu não tinha nada - todos os gritos, comentários e olhares haviam sido substituídos pelo silêncio palpável.
3 meses atrás, a explosão ameaçara iniciar, se alastrando lentamente. Tudo começara com os óculos - um presente de Alex que, até onde eu sabia, podia ter custado quase todo o seu salário como garçom. O óculos que meu pai dissera ser "um pouco estranho" na primeira vez que eu havia usado, e então o partira ao meio quando eu me recusei a tirá-lo, mesmo depois de ele levantar a voz e dizer que filho dele não sairia "com aquela coisa de bichinha". O óculos que eu me recusara a tirar mesmo depois de Margareth sussurrar, em sua voz baixinha e amedrontada, como quem previa uma tempestade, pra eu simplesmente deixar pra lá. Mesmo depois de ele jogar as chaves na mesa e vir em minha direção. Mesmo depois de suas mãos agarrarem minha camisa com tanta força que poderia rasgá-la.
Alex e eu costumávamos discutir muito, e metade das brigas começava porque ele dizia que eu devia "me impor mais". Como se fosse fácil. E era - pra ele. Sua família o apoiava, independente de tudo. O máximo que sua mãe fizera quando ele assumira ser gay havia sido puxá-lo num abraço apertado, dizendo que estava tudo bem. E estava, porque eles o aceitavam como ele era. Eu queria ter a mesma sorte.
Em uma de nossas mais recentes discussões, ele dissera, em um tom acusatório, que era aquilo que nós deveríamos fazer. Resistir. O que Alex não entendia é que eu fazia aquilo todo dia. Todo santo dia.
Eu odiava discussões, porque nunca conseguia controlar minhas lágrimas. Então, naquele dia - quando tudo desmoronara - eu fugi, e não foi para Alex. Porque eu estava com medo. Eu sabia que se, de alguma forma, eu encontrasse algo além de conforto e amor em sua voz, estaria tudo acabado. E eu havia perdido tudo mas eu não podia perdê-lo.
Naquele dia, quando meus olhos estavam tão inchados que eu quase não conseguira enxergar o letreiro do ônibus, eu fugira. E não para Alex, porque, de alguma forma, eu estava envergonhado. Uma parte de mim - uma parte que eu odiava - dizia que aquilo tudo era culpa minha. Porque eu precisava provocá-lo? Porque eu não podia ser mais silencioso? Ficar na minha? Não dar tanto na cara?Ser normal?
E eu odiava meu pai por isso - ele materializava todos os meus pensamentos mais obscuros. Tudo o que eu demorara pra aceitar - e amar - em mim desmoronava no instante em que suas palavras me atingiam. Mas, naquela noite, eu percebi que não o odiava. Na verdade, eu não sentia nada - e aquilo me assustou.
1 mês atrás, eu fugira, e não para Alex, mas para aquela praça. A nossa praça. Porque era um lugar seguro, e, naquele momento, aquilo era tudo o que eu procurava.
1 mês atrás, eu passara a madrugada numa praça escura, sem nada além do que um olho roxo e pensamentos assustadores, que eu repassava sem parar em minha mente. 1 mês atrás, eu quase pegara no sono sentado em um banco sujo, até Alex chegar.
Parte de mim desejava que ele viesse até mim, mesmo tendo certeza de que não havia maneira de ele saber. Eu sabia que ele estava num evento importante da faculdade - para o qual eu não havia sido convidado porque havíamos brigado. Eu sabia que Alex estava longe dali e de maneira alguma poderia adivinhar que aquilo acontecera, mas, ainda assim, desejei que ele magicamente aparecesse e então, por alguns segundos, quase o culpei por não estar ali. Era aquilo o que você fazia quando chegava ao fundo.
1 mês atrás, mamãe pegara meu celular, que eu sem querer deixara para trás no meio da confusão - quando ela conseguira tirar meu pai de cima de mim - e então ligara para Alex.
1 mês atrás, ele surgira como mágica, se sentando ao meu lado em silêncio e, sem dizer nada, segurara minha mão, me deixando apertar a sua com mais força do que eu imaginava ter.
1 mês atrás, ele me envolvera com sua jaqueta, seus braços, seu corpo, e me deixara sujar sua camisa favorita com minhas lágrimas.
1 mês atrás, nós havíamos dormido juntos pela primeira vez, o que era uma puta duma ironia - eu pensara alguns dias depois, quando já conseguia fazer uma piada. Se meu pai soubesse que seu ataque levara aquilo - eu disse, para Alex, sorrindo - ele me mataria.
1 mês atrás, Alex não achara graça em minha piada e me puxara para um abraço que conseguira me fazer seguro, como eu não me sentia há tempos.
1 mês atrás, eu não sabia que poderia sentir tanta falta de Margareth.
1 mês atrás, eu não precisava morar naquela garagem.
1 mês atrás, eu havia enfrentado meu pai, numa atitude que Alex chamaria de corajosa. Mas ele estava errado - eu era covarde pra cacete. Porque eu estava pronto pra acabar com aquilo. Com o nós. Eu estava pronto para partir seu coração e ele nem fazia ideia.
Eu nunca havia gostado de discussões, então planejei meu discurso todo antes de chegar ali. Porque eu sabia que qualquer palavra sua me faria desmoronar.
1 mês atrás, eu diria que jamais abriria mão de Alex. Porque ele era o Sol, e aquela era a única definição em que eu podia pensar.
Planejei meu discurso todo até chegar ali mas, no instante em que vi seus olhos, rodeados por aquelas marquinhas que se acentuavam quando ele sorria, algo em mim se acendeu, e então eu soube. Eu soube - e senti que jamais vira algo parecido antes.
se me dissessem que tempestades eram tão belas, eu mandaria queimar todos os guarda-chuvas que pudesse encontrar. Deixe que a noite acenda, e você nunca se sentirá tão viva. " E se eu não quiser queimar?" ela me perguntou, vestindo sua expressão mais inteligente, e eu podia jurar - por toda a minha coleção de canetas coloridas e todas as minhas figurinhas do Simon Snow - que seus olhos faiscavam. Não eram a sua parte mais bonita - ela tinha um montão de pedacinhos notáveis e, de alguma forma, era muito mais do que a soma das partes. Não, seus olhos não eram sua parte mais bonita. Talvez fossem as mãos, ou a boca - aquela boca - mas eu era suspeita demais pra falar. Nossa professora de biologia havia dito que podemos ficar três minutos sem oxigênio - o que era tempo pra caramba - mas quando aqueles lábios tocavam os meus, bem... eu tinha certeza que a Srta. Tomas estava errada. Porque aqueles láb...
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