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Aquarela

Via marrom em todos os lugares.
No café que coava às pressas quando ainda nem havia amanhecido, nas ruas empoeiradas que passavam por seus tênis entre a casa e o ponto de ônibus e no cabelo da voz que ditava longos textos por aproximadamente duas horas na sala pequena.
Via marrom em todos os lugares. Marrom que tinha gosto do nome que, agridoce em sua boca, não podia ser cuspido.
Também via amarelo - na mostarda que cobria o sanduíche seco do almoço, na caneta que riscava o caderno em busca de um desenho qualquer, na faixa gritante que pintava a entrada da escola. Via amarelo em todos os lugares.
Amarelo pálido que contrastava com o raio de sol que não vinha há tempos, porque a garoa das tardes intermináveis cegava seus óculos gastos.
Por vezes, via azul. Na pasta que hortelava sua boca às pressas pela manhã e no casaco puído que não desgrudava dos braços da irmã mais velha.Via azul em todos os lugares.
No céu que admirava seu olhar solitário nas tardes de lembranças - essas que, por sua vez, vinham num azul corrido-quase-vôo, que passava por seus olhos em milésimos de segundos inseguráveis.
Também via vermelho - esse um pouco mais raro. Nos olhos desobedientes que choviam em noites teimosas, nos cartões que guardava no fundo do baú trancado com uma chavezinha enferrujada e no batom que apaixonava os lábios quando o espelho dizia seu rosto pálido demais.
Via vermelho em todos os lugares. Só não via nos fios que cobriam aquela cabeça e pareciam carregar todo o sol.
Às vezes, via colorido. Colorido que temperara seu coração numa estação transbordada de um amor tão doce quando o doce de leite da tia Leca - amor que escapara por seus dedos e agora voava por aí, pintando aquele amontoado de coisas sem importância.
Às vezes, via colorido. Em todos os lugares. Mas as cores pareciam sem cor, e tudo parecia um pouquinho menos arco-irizado sem o amor que tatuara cada uma de suas células e se fora sem deixar tinta extra.
Mas não via, ah... Não via brilhante. Porque tudo parecia tão opaco, cinza demais, como aquele muro que tapava o grafite bonito do zé luís, e seus olhos que, vistos na janela embaçada do ônibus vazio, refletiam a parte faltante do conjunto que se desconjuntara.

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