Sobre o estranho episódio dos frascos quebrados:
A primeira vez que percebi o furioso som de um frasco se quebrando foi assustadora. Tapei meus ouvidos com força, encolhida num canto escuro e silencioso, e entre lágrimas raivosas que gritavam solidão, senti-me indesejavelmente doente.
O episódio foi esquecido algumas horas depois, quando recolhi cada um dos cacos pontiagudos, cercada por um estranho sentimento de calmaria que surgia após toda a arrumação e aparente limpeza. Guardei os fracos em minha gaveta, no lugar comum onde eu não podia vê-los, e creio que teria me esquecido de sua existência por um tempo maior não fosse o incidente que o sucedeu.
Voltava de uma deliciosa caminhada quando a pontada novamente me fisgou, levando-me ao chão em poucos segundos. Arrastei-me até o banheiro, numa tentativa tola de segurar cada um dos frascos antes que encontrassem seu caminho até o chão, mas os vi se desmancharem em uma centena de cacos em minhas próprias mãos, que os colaram em mais uma camada protetora. Céus! - suspirei pela corrida rumo a qualquer lugar que nunca demonstrava sinal de chegada, e convenci a mim mesma que os benefícios mostrariam seu valor.
No final daquela semana, tive uma parada cardíaca, quando vi-me lentamente encontrando o chão, meu último pensamento sendo um pedido silencioso para que eu não fosse quebrada junto aos frascos destruídos.
Demorei meses a perceber a fragilidade de minha situação, e meses mais a desistir de tentar segurar todos os cacos pontiagudos que me faziam sangrar lentamente.
Gostaria de poder dizer que recuperei-me completamente e gozo de invejável saúde, mas a verdade é que ainda me assombra uma espécie de dor fantasma. Me consola conhecer, entretanto, a provável verdade de todos nós estarmos envoltos por elas.
Além dos raros episódios de estranha abstinência, carrego uma lição do doloroso episódio dos frascos, e antes que eu me esqueça, compartilho-a com cada um de vós: segure o que te alucina delicadamente, e caso acabe por ventura percebendo-o cair, não aperte entre seus dedos os cacos, numa tentativa tola de colá-los. Às vezes, você só precisa respirar fundo e mandar aos infernos toda a medicina.
Comentários
Postar um comentário