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Mil e um outonos de um passado inexistente

Era uma noite comum - um pouco fria demais para o verão, e um pouco calma demais para um sábado à noite. Eu gostaria de me lembrar dos detalhes específicos em relação à ela, mas como toda lembrança, essa já se torna desfocada com o passar o tempo, como um filme antigo ou algo do tipo. Era uma noite comum, e você apareceu.
Eu me lembro de seus cigarros, o copo meio vazio de um uísque barato em sua mão direita, e a jaqueta de couro gasta que você nunca abandonava. O cabelo meio bagunçado e a pose de garoto que não se importava. Eu me lembro de como você se aproximou, e eu o repudei - talvez com um olhar, ou minhas palavras ríspidas; e você continuou. Talvez estivesse bêbado - você tendia a ser mais engraçado quando enchia a cara - ou talvez sua noite estivesse entediante o suficiente para ir falar com a garota mal-humorada. Você me pagou uma bebida, e me contou sobre sua namorada vadia. Me pagou mais uma bebida, e eu te chamei pra dançar. Me encarou com aquele olhar indecifrável que nem um bom ator conseguiria imitar, e eu coloquei as mãos em seu pescoço. Você mexeu em meu cabelo - e, mais tarde, aquilo se tornou uma mania que eu, embora não pudesse admitir, adorava. Você me acordou quando dormi sobre o balcão, e me puxou numa espécie de abraço desajeitado enquanto subíamos as escadas para meu apartamento. Você tentou me beijar, e mudou de ideia, me deixando com aquela sensação estranha de quase saudade de um garoto que eu mal conhecia. Eu me lembro de tudo isso, e talvez um pouco mais, mas já não é tão nítido em minha mente. Eu ainda me lembro da sensação de quando você me beijava - e de como eu adorava o seu piercing - e do seu abraço. Eu ainda me lembro do aroma de sua colônia, e daquele creme para barbear. Eu ainda me lembro da tatuagem em suas costas, que só fui descobrir algumas semanas depois, e do significado dela. Eu ainda me lembro da música, e de como dançamos naquele casamento que você não queria ir. Eu me lembro do que veio depois, e de como eu te amei um pouco mais. Eu me lembro da noite em que você me achou, e de como eu me odiei por perceber o quanto o havia magoado. Eu me lembro do seu olhar, e de como me puxou para perto quando viu a importância do que eu estava lhe contando. Eu me lembro de quando você voltou do hospital, e de como eu percebi que não conseguiria viver sem você. Eu me lembro de ficarmos abraçados, e de como o silêncio não nos incomodava. Eu me lembro daquele dia na chuva, e de como você estava com raiva, e mesmo assim me deixou ficar. Eu me lembro daquele teste, e de como ele arruinou tudo o que tínhamos. Da noite em que percebi que, talvez, você já não me quisesse por perto, e de como depois você apareceu em minha janela, com o coração partido e um olhar de raiva escondida, mas ainda era você. Eu me lembro daquele show, e de todos os outros. Da música, e do telefonema. Daquela noite em que você não parava de me olhar, e de como aquilo me deixou sem graça. Eu me lembro do dia em que você me salvou - mais uma vez, e de como eu odiei o seu complexo de heroísmo. Ele acabou com a gente, e acabou com você. Você me salvou, de mais maneiras do que eu poderia explicar, e sou eternamente grata.
Quero acreditar que também te salvei, e não fui a válvula para a explosão que te desintegrou. Mas eu fui, e sei que, se hoje meu mundo existe sem você, parte da culpa é minha. Mas também sei que é dele. E sua. Todos temos nossa parcela de culpa, e precisamos viver com isso.
Eu ainda me lembro, mas às vezes já não quero, e nesses momentos, me sinto egoísta por pensar assim. Mas eu sombrevivi, e acho que você gostaria de saber disso. Nós sobrevivemos, e ainda lembramos de você. Sempre lembraremos. Acho que o amor faz isso, não é? Torna as lembranças inapagáveis. Ele tornou você inapagável, e é mais do que eu algum dia sonharia pedir.

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