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Vic

- Quando é que essa caduca vai calar a porra da boca? - fingi me sufocar com meu próprio travesseiro, já enlouquecendo só de pensar em quantas vezes eu tinha ouvido aquela velha gritar como a um animal esquisito na última semana. Para minha sorte, se é que existem sortudos no inferno, eles a punham pra dormir à noite, misturando alguma porcaria potente no meio de sua gelatina gosmenta amarela - eu as dividia por cores, e a amarela era a pior de todas, como um mijo quase sólido.
Em minha primeira noite, quando usei a desculpa de precisar ir ao banheiro para tomar um pouco de ar, na ponta do pé a espiei se debater até um dos enfermeiros - o baixinho gostoso, da voz que parecia modificada por uma porrada de hormônios - a espetar com algo que deixou aquele corredor esquisito em silêncio por uma noite toda. Ainda assim, peguei no sono quase pela manhã, quando a loira do nariz torto e verruga na bochecha esquerda veio se certificar de que eu tomaria aquele café da manhã nojento - fingi beliscar algumas beiradas do pão, a encarando com impaciência até ela dar o fora.
Eu calçava minhas meias de bolas cor de rosa - um presente de Kaki - quando percebi o estranho silêncio ao meu redor, e por um instante imaginei que tinham botado a maluca pra dormir. Suspirei, irritada, percebendo que naquela noite eu teria que pular a janela, porque significa que os enfermeiros fariam rondas de espreita na sua porta, para o caso de ela surtar. Tirei o pedaço de ferro torto que Trix, a maluca sem alguns tufos de cabelo, havia me arrumado, e empurrei a estrutura de metal para cima, devagar o suficiente para não fazer qualquer barulho.
Fechei os olhos antes de pular - o ritual da sorte, como eu brincava comigo mesma - mordi meu lábio quando um dos meus joelhos bateu na maldita pedra, e me pus de pé, ávida pelo frescor do ar frio batendo em meus braços e pernas. Fechei os olhos, respirando profundamente, e então os abri, observando a estranha beleza que a noite trazia para aquele lugar. Esperei alguns instantes para ouvir o som abafado do violino de Ruff, que ensaiava todas as noites perto da dispensa, e estremeci assustada ao ouvir um snif snif que não deveria estar ali de jeito nenhum.
- Que porra era aquela? - foi a primeira coisa que pensei ao abrir os olhos e ver a velha maluca sentada em meu banco, limpando o nariz em sua camisola verde escura, e me xinguei mentalmente de uma série de palavrões ao perceber que eu congelara por segundos demais para ela não ter me visto. Fechei os olhos, já antecipando seus gritos que resultariam em nós duas sermos descobertas e eu estar ferrada, mas quando os abri a maluca continuou me encarando, em silêncio, e então desatou a chorar, o que era muitas vezes melhor do que os gritos, mas ainda sim ruim, porque ela parecia triste pra cacete. Como aquele tipo de choro que você guarda pras horas em que está sozinha, porque sabe que não vai conseguir parar. Que porra.
- A senhora...tá t-tudo bem? - sussurrei, já me amaldiçoado mentalmente, e dei alguns passos em sua direção. A merda já estava feita, me parabenizei, odiando ainda mais a mim mesma quando ela começou a murmurar aquela parada esquisita. A velha repetia aquela mesma palavra uma centena de vezes, e com certeza devia ser algum de seus amigos imaginários chatos pra cacete.
Minha cara de cu e desespero deve ter sido muito óbvia, porque ela parou pra olhar pra mim por alguns instantes bem bizarros, e sussurrou, como se estivesse se desculpando:
Dindi é como ele me chamava, ela olhou para cima, me encarando com os olhos vermelhos, e deu o que me pareceu uma mistura de fungada com um sorriso (o tipo que eu usava apenas com Kaki).
- Nunca sei de onde tirou esse apelido bobo - ela balançou a cabeça pra si mesma, e por alguns instantes eu não disse nada, porque, de que raios aquela velha tava falando? E meu corpo esperava a todo instante que ela começasse a gritar como louca, mas por algum motivo eu não conseguia sair dali.
- Ham, Dindi? - franzi o cenho, não escondendo a minha irritação, mas ela sorriu.
- Você é uma mocinha muito bonita. Não sei porque as garotas da sua idade gostam de raspar o cabelo. Mas ele com certeza te acharia muito espirituosa.
- Ele? - por alguns instantes pensei que ela estivessr alucinando, e então imaginei que eu deveria chamar socorro, mas então eu também estaria encrencada.
- Ele era muito espirituoso também. Eu por vezes tentava acompanhá-lo, mas, céus! Sempre fui uma garota tão calma, e London parecia ter um par de asas nos próprios pés. Asas, como sou boba! - ela riu de si mesma, como se tivesse dito a maior besteira, enquanto eu ainda tentava digerir cada uma de suas palavras.
Um foguete em cada dedinho. Essa foi uma das primeiras coisas que pensei quando o conheci, mas se você quer mesmo saber, não foi a primeira. A primeira coisa que falei pra ele, essa sim eu me lembro bem...
- E o que foi que a senhora falou? - perguntei, num misto de curiosidade, tédio e "eu não sei que merda está acontecendo, mas foda-se".
- Que se ele continuasse franzindo tanto o cenho, seu rosto seria um desenho de rugas em alguns poucos anos. É que ele parecia muito bravo aquele dia, menina. Como essas pessoas que ficam encarando as coisas com tanta raiva que parecem achar que podem fazer elas explodirem.
- E porque ele estava com raiva? - perguntei, tentando calcular quão esquisita eu era por lhe dar ouvidos, e ela, por estar de camisola num banco úmido tagalerando sobre sei lá o que com uma garota como eu.
- E sei lá eu?! A primeira coisa que pensei quando o vi, ah, foi que ele parecia um pirata. Com aquela cara brava, a sobrancelha levantada e a bandana vermelha na cabeça. Como o próprio...como é mesmo o nome daquele moço bonito daquele filme de piratas? Sempre odiei essas coisas, mas ele era um moço bem apessoado.
- Capitão Jack?! - perguntei, tentando me lembrar da última vez em que havíamos assistido aquilo no aparelho de dvd do meu pai, mas a real é que já fazia tanto tempo.
- Aquela cara brava, mas ele era lindo. Tão bonito quanto o tal pretendente da minha irmã mais velha, aquela nariz em pé da Briana. Ah, não, meu London era mais. E sabe o que foi que ele fez quando eu falei sobre as rugas? - a velha ignorou totalmente o que eu havia falado, e dei de ombros, não por desinteresse, mas porque eu queria que ela terminasse logo a porra daquela história.
- Ele desatou a rir, quase cuspindo aquela bebida fedorenta, ficou rindo por uma meia hora até pedir ao garçom que me trouxesse um drink. Mas sabe o que eu lhe disse? Que eu não queria beber aqueles drinks caros não, que eu queria é que ele me levasse pra dançar. E o danado me olhou com aquela cara de metido, estendendo a mão como quem já tinha treinado aquilo com a cidade toda, mas chegou na pista de dança e falou que não sabia dar um passo pro lado direito.
A velha começou a rir, limpando as lágrimas que eu nem mais sabia se eram de tristeza, saudade ou graça, mas também comecei a rir junto, e nem eu mesma sabia porquê.
- Mas nós dançamos - ela voltou a falar - mais uma e mais uma, até eu perguntar se ele morava por ali, e sabe o que o danado me respondeu? Que eu poderia encontrá-lo ali mesmo no bar. Mas sabe, menina, eu lhe disse pra me buscar na porta de casa, porque é essas coisas que a gente fazia na minha época, e ele bem que apareceu, até usando terno e com uma flor. Meu London sempre tinha uma flor pra mim.
- Tinha? - perguntei, uma versão discreta do "ele morreu?", mas a velha me ignorou e continuou sua história, parecendo mais falar para si mesma do que para mim, mas eu não conseguia tirar os olhos dela. E não conseguia parar de escutá-la.
- Meu London tinha um coração enorme, sabe, menina? Tão grande que não cabia nele...deve ser por isso que ele me amava tanto - no meio da frase ela já caiu em lágrimas, segurando o rosto com as mãos enrugadas, e todo o resto de sua fala eu só ouvi entre sussurros cortados.
- Ele sempre me levou pra viajar. Não porque ele era um pirata (essa era só minha brincadeira sobre sua cara fechada) mas London me apresentou tantos mares. Como ele amava nadar... e ele sempre dizia "Dindi, vem comigo! Larga de ter medo". Meu London não tinha medo de nada...
- Ele...ele não está aqui? - me aproximei para sentar ao seu lado, e ela desatou a chorar num choro barulhento, quebrado, bagunçado por soluços tão constantes que ela parecia mal respirar.
- Tá tudo bem - me sentei ao seu lado, colocando meu braços ao redor do seu ombro ao mesmo tempo em que tentava me lembrar como é que se abraçava alguém, quando tomei um susto e a velha começou a gritar, berrar, tão alto que meu corpo paralisou, e eu nem mesmo conseguia me afastar.
Eu ainda a encarava assustada quando os enfermeiros chegaram, cada um a segurando de um lado, um terceiro lhe dizendo que estava tudo bem, enquanto preparava a seringa, e uma quarta voz que não reconheci me fazendo tantas perguntas que eu só consegui balançar a cabeça, quase não escutando o "está tudo bem" que Trici, a enfermeira boazinha, sussurou em meu ouvido. Senti a agulha sendo enfiada em meu braço esquerdo quando já era tarde demais, acordei com o sol entrando em listras pela janela, com a loira do nariz torto tagarelando sobre a deliciosa gelatina de limão, e tudo o que consegui fazer foi encarar aquelas correntes, meus olhos se enchendo d'água por uma história de amor da qual eu nunca saberia o final.

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