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Multiversos de você

Ana sempre me dizia que queria modificar o tempo, e com toda a magia na ponta de seus dedos, eu não duvidava que pudesse. Uma noite, ela me pediu para fechar os olhos, segurou minha mão junto a sua, e sussurrou no canto do meu ouvido um amontoado de descrições desorganizadas, tão aceleradas como as cenas de um filme pra lá de confuso.
Isso é tão estúpido, penso nos primeiros segundos, cedendo então à brincadeira, porque Ana sempre mergulhava profunda e loucamente nas minhas. Em alguns segundos, me vejo observando duas desconhecidas no centro de um vagão, e reviro os olhos às suas risadas vergonhosamente histéricas.
- O que foi? - uma das garotas, a de camisa de gola alaranjada, olha para baixo, recuando timidamente enquanto a outra toca a lateral de seu rosto com suavidade, como se nada mais existisse em todo aquele trem barulhento.
- Eu só quero olhar pra você - a garota das tranças brancas a encara intensamente e sem pudor, e a outra retribui por rápidos segundos, seus olhos dilatados denunciando o que ainda não parecia a hora certa de dizer.
- Para com isso - a primeira coloca a mão em seu peito, empurrando-a com uma força quase nula, e em seguida oferecendo a ela um sorriso que ao mesmo tempo me parecia constrangido e empolgado, quase na mesma proporção. Posso dizer pelo modo como aproxima seu rosto da garota de blusa laranja que aquilo fazia seu coração acelerar, e junto a ela perco todo o ar, ansiando pela próxima cena.
Lá pela metade do segundo ato me percebo parada a um banco de concreto que não vejo há anos, e meu coração se aperta quando observo a garota das tranças bonitas puxar a outra para perto num abraço que parecia dizer milhares de palavras, enquanto a outra fecha os olhos inalando o cheiro da lateral de seu pescoço. Observo-as então deitarem na grama, ao som de uma música que desconheço, e então em um quarto escuro que parecia guardar todas as estrelas, queimando naquele belo olhar castanho, tão intenso que nenhuma de nós podia recuar. A garota da blusa brega parece perder suas palavras, e eu as minhas, quando todos os universos se mesclam numa confusão incontrolável, e em poucos segundos me esqueço até mesmo de onde estou.
Vejo-a colocar os braços ao seu redor de sua amada, o que faz a outra aproximar-se ainda mais, como se estivesse rodeada pelo lugar mais aconchegante do universo, e nem por um instante eu duvido que estivesse.
Ana continua sussurrando suas palavras, e observo uma das garotas desconhecidas fechar seus olhos brevemente, com profundidade. A sensação me atinge de longe, quase como se fosse minha, e se mexe em algum lugar entre meu estômago e meu coração.
Observo-as atentamente como se contassem uma história, abaixo os olhos envergonhada por passar tanto tempo espionando, e então volto a olhar, mergulhando no que parece tocá-las tão profundamente. Como uma típica chorona assistindo a um filme clichê, meu coração se derrete no final daquela cena, e arrepios percorrem minha pele ao iniciar da próxima, junto ao som de risadas que me parecem tão familiares.
Coloco meu rosto mais perto da janela, tão perto que já nem me importo de ser vista espionando, ouço-as rirem de algo que provavelmente nem tem tanta graça, e observo uma das garotas abraçar a outra com tanta força que meus próprios braços parecem aquecidos. Sinto dedos quentes na lateral de minha bochecha, e por alguns instantes me arrisco a abrir os olhos, sendo trazida de volta para aquele universo.
Segundos atrás, todo aquele quarto já não me parecia mais aquele quarto, numa confusão de realidades que me deixara tonta, e minha pele não parecia nem um pouco minha pele, mas Ana ainda era a Ana, e sua mão ainda se entrelaçava na minha, tão quente, boa e sua. Então ela me puxa para perto, tão perto que parece não haver qualquer espaço entre nós duas, e sei exatamente onde estou.
Ana sempre me dizia que queria modificar o tempo, e eu cética respondia que parasse de ser boba, porque embora eu adorasse qualquer filme do tipo Efeito Borboleta, eu sabia que aquilo era só ficção.
- Mas eu posso - ela teimava toda vez, me obrigando a fechar os olhos com força, entrar naquela janelinha embaçada de sua cabeça e assistir a um filme repetido que me parecia tediantemente comum.
Mas naquela noite, percebi que eu estava completamente errada. Ana sempre me dizia que queria modificar o tempo, e naquele dia ela o parou, quando depois de viajar em nossos sonhos compartilhados eu abri os olhos, perdida num estranho espaço tão familiar, e seus lábios quentes respirando no canto do meu pescoço me trouxeram de volta. A verdade é que ela não possuía uma máquina do tempo ou poderes mágicos - embora os desejasse tão profundamente - mas tinha suas palavras, que faziam todos os ponteiros girarem e desgirarem aconchegantemente ao nosso redor, e aqueles olhos, que pareciam perfeitamente capazes de parar tudo: o tempo, aquele quarto, e, talvez, até as batidas de lá do fundo de mim mesma.

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